A triste atualidade de "Iracema: Uma Transa Amazônica"
Docudrama tornou-se marco cinematográfico ao denunciar mazelas da ditadura - que, meio século depois, persistiram, ou mesmo se agravaram
No dia 17/06 chegará aos cinemas nova versão de Iracema: Uma Transa Amazônica restaurada na Alemanha, país que coproduziu o filme e onde, impedido pela ditadura de ser visto no Brasil, estreou, em 1975.
Dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Iracema ocupa um lugar especial na história do cinema brasileiro, sendo cultuado tanto por promover um processo de desmistificação in loco do projeto desenvolvimentista do regime militar, quanto por sua combinação única de documentário e ficção, resultado tanto de escolha estético-narrativa de seus diretores quanto de uma metodologia de filmagem imposta pelos cuidados necessários para filmar clandestinamente, em plena ditadura, em uma área de segurança nacional.
A combinação de intensa dramaticidade social e enraizamento na realidade da região, em um registro que oscila de forma a um tempo fluida e errática entre ficção e documentário, possibilita que Iracema aborde com contundência ao menos quatro questões de grande relevância: a citada desmistificação do “Brasil Grande” do regime militar e de sua obra mais faraônica, a Transamazônica, numa denúncia que, por sua vez, se desdobra em um documento acerca de agressões de monta ao meio ambiente, sob chancela governamental – o que mantém o filme atualíssimo. Diagnóstico que se estende à radiografia do drama indígena no momento mesmo em que este se acirrava dramaticamente ante a ocupação desenfreada de terras amazônicas promovida pela ditadura. Por fim, a imersão na exploração sexual da protagonista contempla, a um tempo, tanto a situação da infância marginalizada quanto da mulher na Amazônia – particularmente da mulher indígena ou cabocla -, quase desprovida de agenciamento próprio e explorada sexualmente à exaustão, até o adoecimento ou a miséria.
Produzido num momento em que, duplamente estimulado pelo avanço da estrutura de telecomunicação e pelas verbas da propaganda oficial, o grosso da produção audiovisual no país, Rede Globo à frente, irradiava o ideário do “brasil Grande” e tecia loas ao desenvolvimentismo a qualquer preço, Iracema, ao denunciar, com extremo realismo, as mazelas elencadas no parágrafo anterior, “escova a história a contrapelo” como propõe Benjamin em suas “Teses sobre o Conceito de História (1940).
Meio século depois, o tratamento de tais questões, talvez ainda mais do que o inovador blending de ficção e documentário, assegura a atualidade do filme – e, dando vida a tudo isso, há a performance corajosa da estreante Edna de Cássia e uma das maiores atuações do ator-fetiche Paulo César Pereio.
Para mim, sem sombra de dúvidas, um dos melhores documentários da história do cinema brasileiro.